Musique : Luiz Gonzaga Jr – Uma Família Qualquer
Os Pobrezinhos
« Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
– Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
– Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)
de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
– Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
– Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
– O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse
– Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar
e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis »
págs. 119 a 121 (1ªedição)
Livre de chroniques d’Antonio Lobo Antunes
Les pauvres
Dans ma famille, les animaux domestiques n’étaient pas des chiens, des chats ou des oiseaux ; dans ma famille, les animaux domestiques étaient pauvres. Chacune de mes tantes avait son pauvre personnel et intransmissible, qui venait une fois par semaine chez mes grands-parents pour récupérer, avec un sourire reconnaissant, la ration de vêtements et de nourriture.
Les pauvres, en plus d’être évidemment pauvres (de préférence pieds nus, pour que leurs propriétaires puissent être chaussés ; de préférence cassés, pour qu’ils puissent porter de vieilles chemises qui leur évitaient le sort naturel des serpillières ; de préférence malades pour recevoir un paquet d’aspirine), devaient avoir d’autres caractéristiques essentielles : aller à la messe, baptiser leurs enfants, ne pas s’enivrer, et surtout, rester fièrement fidèles à leur appartenance. Il me semble encore voir un homme en somptueuses guenilles, ressemblant à Tolstoï jusque dans sa barbe, répondre, offensé et hautain, à un cousin distrait qui insistait pour lui offrir une chemise dont aucun de nous ne voulait :
– Je ne suis pas votre pauvre, je suis le pauvre de ma Teresinha.
Le pluriel de pauvre n’était pas « pauvre ». Le pluriel de pauvres était « ces gens ». À Noël et à Pâques, les tantes se rassemblaient en troupeaux, armées de tranches de gâteau de roi, de sacs d’amandes et d’autres délices équivalents, et se rendaient pieusement à l’endroit où vivaient leurs animaux domestiques, c’est-à-dire, un quartier de maisons en bois à la périphérie de Benfica, dans le quartier de Pedralvas et près de la route militaire, afin de distribuer, avec la pompe des Rois Mages, des chaussettes en laine, des pantalons, des sandales qui ne vont à personne, des images de Notre-Dame de Fatima et d’autres merveilles de même calibre. Les pauvres sortaient alors de leurs huttes, excités et reconnaissants, et mes tantes m’ont immédiatement prévenue, les chassant du revers de la main :
-Ne vous approchez pas trop, ces gens ont des poux.
A ces moments-là, et seulement à ces moments-là, il était permis de donner aux pauvres, un don toujours dangereux car il risquait d’être dépensé
(- Ces pauvres gens n’ont aucune notion de l’argent)
d’une manière délétère et irresponsable. Le pauve de ma Carlota, par exemple, était interdit d’entrée dans la maison de mes grands-parents parce que, lorsqu’elle lui mit dix sous dans sa paume, recommandant, maternellement, inquiète par la santé de son animal de compagnie
– Maintenant, écoutez, ne dépensez pas tout en vin.
L’effronté, très mal elevé, lui répondit :
- Non, madame, je vais acheter une Alfa-Romeo.
Les enfants des pauvres se définissaient par le fait de ne pas aller à l’école, d’être maigres et de mourir souvent. En demandant les raisons de ces caractéristiques inhabituelles, on m’a répondu avec un haussement d’épaules
-Que veux tu mon enfant, ces gens sont comme ça.
et j’ai compris qu’être pauvre, plus qu’un destin, était une sorte de vocation, comme être bon au bridge ou au piano.
A l’amour des pauvres présidaient deux créatures de l’oratoire de ma grand-mère, l’une en argile et l’autre en photographie, le Père Cruz et Sãozinha, qui dirigeaient la charité sous un crucifix en acajou. Le père Cruz était un type nul en soutane, et Sãozinha était une jeune femme pleine de médailles, avec un sourire d’actrice de cinéma d’emballage de chewing-gum, dont on m’a dit qu’elle avait offert sa vie à Dieu de manière exemplaire en échange de la santé de ses parents. L’actrice a donné un coup de pied dans le seau, son père alla mieux et, à partir du moment où ils ont révélé ce miracle, j’ai frémi de panique lorsque ma mère, éternuant, m’a ordonné
– Allez, offre ta vie, parce que je suis fatigué de me moucher.
et j’irais directement au cimetière pour qu’elle n’ait pas à boire de thé au citron.
A mon avis, le Père Cruz et Sãozinha étaient mariés, surtout parce que dans un bulletin que ma famille signait, appelé « Almanaque da Sãozinha », ils rapportaient tous les deux, en communion de biens, leurs miracles qui consistaient habituellement en des guérisons de paralysies et des vingtièmes récompensés, des miracles incroyables accompagnés d’encens à l’odeur douce.
Tant de pauvres, tant de petits saints et tant d’odeurs m’ont mis en colère. Et je pense que c’est à peu près à cette époque que j’ai commencé à regarder, avec une affection croissante, une photo poussiéreuse jetée au grenier montrant une foule jubilatoire de pauvres gens autour de la guillotine où l’on coupait la tête des rois ».
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